Deve haver equilíbrio entre formalismo e legalidade
“Teu dever é lutar pelo Direito, mas no dia em que encontrares em conflito o direito e a justiça, luta pela justiça.”
Essa afirmação de Eduardo Couture, dirigida aos advogados para lembrá-los de seus deveres, pode ser interpretada de muitas maneiras. Pode ser vista em diferentes perspectivas do jurista, conforme seja ele advogado, promotor, juiz ou doutrinador do Direito. Não há dúvida de que sua maior força consiste na advertência de que o Direito é um sistema vivo, que evolui e se renova. Não por acaso, o próprio Couture advertia aos advogados: “O Direito se transforma constantemente. Se não seguires seus passos, serás a cada dia um pouco menos advogado”. No mundo do Direito, isso não vale só para os advogados.
Quando penso o significado do que disse Couture, sou muitas vezes tentado a fazer analogia com o que disse Og Mandino, no opúsculo “O Maior Milagre do Mundo”: o maior milagre do mundo não é ressusctitar os mortos. É ressuscitar os vivos.
Há, entretanto, que se tomar essas advertências de Couture com um grão de sal. O direito é posto em prática com base em um conjunto de leis. Quando se fala no estado de direito, a percepção natural é de que se refere a um conjunto de leis democraticamente estabelecidas e dirigidas a todos, igualmente. Assegurando liberdade, equidade e responsabilidade no convívio social. No estado de direito, lei é igual a segurança jurídica em busca de Justiça.
Justiça, todavia, é um conceito subjetivo. O justo não é necessariamente visto por todos da mesma forma.
Parece natural que Eduardo Couture, que viveu a sua maturidade contemporaneamente a regimes totalitários da primeira metade do século XX, que impuseram leis que frequentemente afrontavam o sentimento comum de justiça, tivesse se preocupado em incentivar o primado do sentimento de justiça.
Mas, também é verdade que muitos daqueles que não se prepararam para conviver com a diversidade e com a força da democracia, expressa em leis, se sintam tentados a abonar a violação da lei a pretexto de realizar o que no subjetivismo dos seus interesses ou ideologias chamam de justiça. A chamada justiça alternativa, quando põe em confronto a lei e uma percepção subjetiva do justo, para impor determinada ordem que o legislador não previu, subverte o estado de direito. Transforma o juiz em legislador desvinculado do sistema legal que deveria interpretar.
A interpretação da lei se faz com o objetivo de praticar justiça. Mas, como é evidente, interpretar significa traduzir o comando da lei. Equivale a revelar o seu conteúdo. Significa compreender e determinar a ordem, o ordenamento, a organização de valores que a lei visou estabelecer. A suposição de que se possa fazer justiça contra a lei democraticamente estabelecida implica considerar injusta uma lei que a maioria desejou, mas que não agrada ao interprete. É, portanto, um evento que conduz a discussão ao cerne da idéia de democracia. Questiona a democracia como valor. Implica por em dúvida se é necessariamente justa a ordem legal decidida democraticamente. Ou, se seria mais justa a ordem imaginada pelo intérprete.
Aceita que seja a ordem legal, a justiça se deve buscar entre as várias interpretações possíveis da lei. E, aí, a lição de Couture é fundamental. A lei é um ser vivo. Protege um determinado bem jurídico, uma determinada ordem da vida ou um valor social. Mas, para fazê-lo, pode, e às vezes precisa ser interpretada de diferentes maneiras ao longo do tempo. Porque os bens da vida e os valores sociais também evoluem e desafiam novas ordens.
Mantida a fidelidade ao bem jurídico que o legislador quis proteger, a interpretação da lei pode priorizar a sua forma, apegar-se à literalidade das suas palavras, ou pode dar preferência ao conteúdo, à vontade social identificável dentro da lei. Dentre as vontades percebidas ou perceptíveis na lei, pode o interprete escolher aquela mais coerente com o contexto cultural atual da sociedade a que se aplique.
O apego excessivo à forma, como se o jurista fosse um burocrata que não devesse atenção e respeito a nada mais do que às palavras um dia escolhidas pelo legislador para expressar a lei como vontade social, pode ser uma forma de descumprir a lei. Pode ser uma maneira de deixar o direito morrer, por exagerado apego às vestes que um dia o representaram. Cria-se uma espécie de direito embalsamado. O formalismo que contrasta com o conteúdo, que desserve ao bem jurídico que o legislador quis proteger, é a negação do direito, ou a renegação da ordem jurídica buscada pela lei que se quer interpretar.
As formas jurídicas, sejam elas ritos, prazos, ou mesmo as palavras escolhidas pelo legislador para expressar vontades sociais, ordens ou ordenamentos legais, existem para dar segurança jurídica. Para conferir previsibilidade e igualdade às situações jurídicas. Mas, quando as formas jurídicas se antagonizam com o bem jurídico que se quer proteger, abre-se espaço para, no suposto cumprimento formal da lei, instalar-se o arbítrio, a vontade ocasional, sem fundamento no bem comum, e sem compromisso com a justiça.
Não sem razão, se tem afirmado que a chamada jurisprudência defensiva de muitos tribunais, que objetiva identificar vícios processuais que, ainda que irrelevantes, possam diminuir o número de casos que o tribunal deva julgar pelo conteúdo, constitui uma politica de desconsideração da segurança jurídica e do acesso à justiça. Nem sempre a opção entre a forma e o conteúdo é fácil. Pesam as crenças, a índole e as ideologias do intérprete.
Tome-se o exemplo do julgamento recentemente ocorrido no Supremo Tribunal Federal, sobre constitucionalidade, ou inconstitucionalidade, do processo legislativo de que resultou a Emenda Constitucional 62/09, ou PEC dos Precatórios, mais conhecida pelo epíteto de “PEC do Calote”.
Entre outras arguições de inconstitucionalidade, os autores da ação alegam que as duas casas legislativas, Senado e Câmara, violaram a regra constitucional que impõe votação em dois turnos para as propostas de emenda constitucional. Diz a Constituição que a proposta de emenda constitucional “será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros” (artigo 60,§ 2º).
Em acréscimo, já no plano infra constitucional, o Regimento Interno do Senado estabele que “o interstício entre o primeiro e o segundo turno será de, no mínimo, cinco dias úteis” (artigo 362). Por sua vez, o Regimento Interno da Câmara Federal diz que entre cada turno de votação devem decorrer cinco sessões, no mínimo (artigo 202, § 6º, e artigo 203).
No caso concreto da Emenda Constitucional dos Precatórios, a votação do segundo turno no Senado ocorreu alguns minutos após a votação do primeiro turno. E o segundo turno de votação na Câmara ocorreu algumas horas depois da primeira votação.
Definiram-se no Supremo Tribunal Federal duas correntes de julgamento.
Uma, estritamente formal, entendeu que o texto constituicional, ao impor a votação em dois turnos das propostas legislativas de emenda constitucional, não determina o tempo que deve medear entre a primeira e a segunda votações. Ainda com rigor formal, entendeu essa corrente que não caberia ao Supremo Tribunal Federal discutir a violação dos regimentos internos do Senado e da Câmara, que prevêm intervalos mínimos de cinco dias ou cinco sessões entre a votação de cada turno, porque a regra regimental, por ser infraconstitucional, escaparia às competências do Supremo.
Outra corrente, que se configurou minoritária, julgou que o legislador constituinte, ao impor a votação de emenda constitucional em dois turnos em cada casa legislativa, objetivou proteger, como bem jurídico, a estabilidade da Constituição. Entendeu que o constituinte determinou que a Constituição não pode ser alterada por impulso, nem de afogadilho. As alterações constitucionais, nessa percepção, devem ser feitas com tempo suficiente para reflexão, e até com tempo suficiente para a consciente participação da sociedade na construção da opinião pública a ser auscultada pelo Congresso. Portanto, a exigência de dois turnos não seria apenas o desenho de uma forma irrelevante e aleatória, que as lideranças partidárias pudessem dispensar, mas a garantia de maturação de um processo.
Ademais, entendeu essa corrente que os regimentos internos das casas legislativas, ao estabelecerem o prazo mínimo de cinco dias ou de cinco sessões entre a votação do primeiro e do segundo turnos, não obstante o façam no plano infraconstitucional, integram e completam a vontade do constituinte, que pretendeu conferir significado, relevância, eficácia e utilidade ao regime de dois turnos. Dois turnos com intervalo praticamente inexistente de tempo entre um e outro representam, na prática, dois turnos quase superpostos, com os efeitos de um único turno, sem a possibilidade de se reorganizarem as idéias e as vontades entre uma votação e outra.
Penso que o saudável equilíbrio entre rigor formal, respeito à lei e busca do ideal de justiça só se pode encontrar em cada caso concreto com a resposta corajosa e clara a uma indagação objetiva. É preciso perguntar qual foi o bem jurídico que o legislador quis proteger. E dentro do texto da lei, sem desrespeitar nenhum dos seus contornos formais, buscar a resposta que mais dê sentido ao seu conteúdo, em coerência com o bem jurídico tutelado.
No caso da PEC dos Precatórios, cuida-se de alteração constitucional que cria a gravíssima exceção de permitir aos Poderes Executivos deixar de cumprir sentenças judiciais, ou ordens de pagamento emanadas do Poder Judiciário, durante períodos de no mínimo quinze anos, ou de cumprir tais ordens segundo as conveniências de outros interesses administrativos.
A rigor, trata-se de regular a relação entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo, essência do regime republicano, que a Constituição protege como cláusula pétrea (artigo 60, § 4º, III ). Seria importante indagar que forma de segurança jurídica, em prol de sua estabilidade, a Constituição pretendeu extrair da votação em dois turnos. Na complementação do raciocínio jurídico, caberia indagar se essa segurança jurídica é alcançada quando os dois turnos se sobrepõem.
Também seria de grande utilidade perguntar se o precedente oferece riscos à estabilidade da Constituição, na medida em que possa ser visto pelo Congresso como sinalização permissiva de que emendas constitucionais se façam com os ritos decididos por acordo de lideranças partidárias.
Celso Cintra Mori é advogado do escritório Pinheiro Neto Advogados