E-books também devem ter imunidade tributária
Nossa Constituição Republicana de 1988 tem entre os seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político[1]. Não é por outra razão que se consagra entre os direitos fundamentais do artigo 5º a liberdade de pensamento, vedando somente o anonimato. Permite-se, de tal forma, a ampla difusão de ideias e pensamentos, o que implica na saudável promoção de atividades intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação[2]. É a liberdade em um Estado Democrático Direito para pensar e expressar suas ideias amplamente sem censura prévia, tornando a sociedade pluralista e o cidadão digno. Até porque a dignidade não se faz somente com pão e circo.
Em harmonia com este direito individual do cidadão é preciso, ainda, lembrar do direito coletivo de ser informado, que é coroado, especialmente, pelo artigo 220 da Constituição Federal, onde se tem a proteção da liberdade de imprensa, ao enunciar: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.parágrafo 1º – Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no artigo 5º, incisos IV, V, X, XIII e XIV, parágrafo 2º – É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.
E como se viabiliza o exercício deste direito de expressar o pensamento e de ser informado? Isto se dá por meio tradicionalmente por meio de livros, jornais e periódicos, embora nos dias atuais outras formas vinculadas ao mundo eletrônico têm adquirido uma grande participação e devem ser inseridas neste sistema constitucional de direitos e garantias.
Daí porque o constituinte de 1988, no artigo 150, inciso VI, alínea “d”, impede que o Estado tribute livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão, como se pode constatar ao dispor que: “ Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…) VI – instituir impostos sobre: (…) d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.”
Este dispositivo constitucional é uma garantia fundamental do cidadão, eis que, ao impedir a tributação, viabiliza, efetivamente, a liberdade de pensamento e próprio direito à educação que se corporifica por meio de livros, jornais e periódicos, bem como outros meios semelhantes. Ademais, não se trata de um simples direito individual do cidadão, mas, ao mesmo tempo, um direito coletivo de proteger e garantir o direito à informação e ao conhecimento, sendo verdadeiro limite ao próprio poder de reforma constitucional.[3]
Ocorre, porém, que o Estado, por meios de seus órgãos tributários, sempre restringiram indevidamente o gozo desta imunidade, em descompasso com o espírito democrático e de efetividade dos direitos fundamentais.
Felizmente, o Supremo Tribunal Federal tem sido um defensor desta imunidade ao interpretá-la de modo mais amplo e sempre à luz da finalidade almejada pelo constituinte que é a difusão democrática e pluralista de ideias, sem prévia censura. Bem por isso, a jurisprudência do Supremo tem decidido que a impossibilidade de se tributar o livro, jornal e periódico: (i) – não depende do conteúdo, razão pela qual ser reconheceu este direito inclusive a lista telefônica[4] e álbum de figurinhas[5]; (ii) – não somente se protege o papel mas também os filmes e papéis fotográficos[6].
Além disso, o STF, partindo da premissa de que a imunidade objetiva viabilizar a divulgação de ideais à comunicação, evoluiu recentemente ainda mais em suas decisões ao entender que também não poderá ser objeto de tributação todo e qualquer insumo e mesmo ferramenta indispensável à edição de veículos de comunicação, como o maquinário de impressão offset.
Neste sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal[7]: “CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Extraia-se da Constituição Federal, em interpretação teleológica e integrativa, a maior concretude possível. IMUNIDADE – “LIVROS, JORNAIS, PERIÓDICOS E O PAPEL DESTINADO A SUA IMPRESSÃO” – ARTIGO 150, INCISO VI, ALÍNEA “D”, DA CARTA DA REPÚBLICA – INTELIGÊNCIA. A imunidade tributária relativa a livros, jornais e periódicos é ampla, total, apanhando produto, maquinário e insumos. A referência, no preceito, a papel é exemplificativa e não exaustiva”.
Tais decisões demonstram claramente a necessidade de o governo (federal, estadual e municipal) cada vez mais viabilizar a imunidade tributária dos livros, jornais e periódicos, bem como dos insumos que permitam a edição de tais bens de fundamental importância (como papel, tintas, maquinários, entre outros), dentro de um espírito democrático, sob pena de forçar o contribuinte a se dirigir, mais uma vez, ao Poder Judiciário para poder resguardar seus direitos. E se, assim for, não deve se acanhar!
Ao Supremo Tribunal Federal, ainda, cabe mais um desafio: reconhecer que esta imunidade tributária se estende aos livros eletrônicos e demais itens (aparelhos de leitura, entre outros), o que se dará com o julgamento do Recurso Extraordinário 330.817/RJ[8], ainda sem data para inclusão em pauta. Acredito que a melhor interpretação se dará em favor da imunidade e assim espero!
Neste aspecto, tivemos oportunidade de afirmar juntamente com Saul Tourinho Leal que, entre outros argumentos: “A finalidade normativa de referido texto constitucional, ao imunizar o livro, foi de proteger e dar o máximo de eficácia aos direitos fundamentais vinculados à liberdade, democracia, pluralismo, cultura, educação, ciência e informação. O objetivo é de viabilizar a expansão, divulgação, criação e acesso ao conhecimento, ideias, pensamentos, informações, cultura, ciência, educação, por meio de livros. Daí porque, o suporte em que se encontra o livro é de somenos importância, quando o que se pretende é proteger com máxima eficácia os bens jurídicos constitucionalmente elegidos. Repita-se: o que é relevante é a substância (livro = conhecimento, cultura, educação, pensamentos, ideias, entre outros aspectos) e não forma (suporte físico = em papel, em cd, em DVD, emKindle, digital, entre outros”.[9]
Ademais, de forma pertinente esclarece Andrei Pitten Velloso: “Dita concepção advém de uma inadequada interpretação literal do artigo 150, inciso VI, alínea ‘d’, da Constituição Federal, que vincula os objetos culturais desonerados (livros, jornais e periódicos) ao suporte físico em que eles costumavam ser impressos (papel). Argumenta-se que, se o constituinte aludiu ao papel destinado à impressão dos livros, jornais e periódicos, ele somente teria pretendido desonerá-los no seu formato impresso, jamais eletrônico. Essa linha argumentativa parece sustentar-se em premissas falsas, vendo a imunidade dos livros, jornais e periódicos como um privilégio tributário concedido à indústria gráfica[10], quando ela constitui uma garantia de todos os cidadãos, que resguarda direitos e liberdades fundamentais, indispensáveis à construção de uma nação culta, civilizada e competitiva. Deve-se, pois, rever tal posicionamento, a fim de que se respeite não apenas a letra do artigo 150, VI, d, da Constituição da República – que concede a imunidade a todos os livros, e não apenas a parcela deles -, mas sobretudo a sua finalidade, de resguardar a liberdade de expressão e de realizar os direitos fundamentais à educação, à informação e à cultura.”[11]
Até porque, seja em papel ou por outro meio, vale lembrar as palavras de Castro Alves, extraída de voto do Ministro Carlos Ayres Britto[12]:
“Oh! Bendito o que semeia
Livros… livros à mão cheia…
E manda o povo pensar!
O livro caindo n´a alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar”.
é advogado do escritório Salomão e Matthes Advocacia.